Thursday, February 08, 2007

América Latina XX-XXI (1)

A reportagem de capa da revista Veja de 28 de outubro de 1970 tratou do futuro da esquerda latino-americana. Compare o contexto analisado na época com o atual:

Esquerda na América 28 de outubro de 1970

O que dizia a reportagem de VEJA

Com a confirmação, pelo Congresso Nacional, do nome do marxista Salvador Allende para a Presidência do Chile, a América Latina passa a testar se outros tempos, tempos incertos de esquerda, estão de fato se iniciando. No mesmo momento, Peru e Bolívia se afundam progressivamente na linha "nacionalista de esquerda" – de desfecho ainda nebuloso. No Peru, militares liderados pelo general Juan Velasco Alvarado nacionalizaram a empresa petrolífera americana IPC, passaram a repensar o tratamento oferecido a empresas estrangeiras e comandaram a reforma agrária e o controle à imprensa. No campo externo, porém, Lima evita o reatamento com Cuba, ao mesmo tempo em que tenta se reaproximar dos Estados Unidos. Na Bolívia, o general Juan José Torres não foi muito além do reconhecimento do mérito do modelo peruano. Torres parece igualmente decidido a evitar qualquer passo mais radical. Mas é mesmo no Chile que a América Latina vê a sua maior transformação: um Chile socialista teoricamente teria condições de exercer na América Latina, a curto prazo, uma influência que Cuba não conseguiu ter em seus onze anos de fidelismo.

O que aconteceu depois

A maior parte dos países da América Latina mergulhou em ditaduras nos anos seguintes à reportagem de VEJA. Curiosamente, os regimes fortes não seriam de esquerda, mas, sim, uma reação ao risco comunista. O Chile talvez seja o maior exemplo disso. O regime socialista do país deixou o Palácio La Moneda, sede do governo, juntamente com o corpo de Salvador Allende, em 1973: mortalmente ferido por um golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet. Durante os 17 anos seguintes, Pinochet comandaria o país, sepultando o sonho socialista e introduzindo reformas profundas e modernizantes na economia. Com a saída do general, em 1990, governos civis democraticamente eleitos se revezaram no poder. Isso inclui administrações socialistas como a da atual presidente, Michelle Bachelet, que chegou a ser presa e torturada durante a era Pinochet.
Ao invés da "nacionalização esquerdizante" de que falava a reportagem de VEJA de 1970, os atuais socialistas chilenos têm se esforçado em manter a estabilidade econômica, ampliar ganhos de produtividade e multiplicar investimentos em áreas como educação e tecnologia. O resultado disso é que a economia chilena é a que mais cresce no bloco latino-americano, com taxas constantes ao redor dos 5% ao ano. Os benefícios são comprovados pelos indicadores sociais: os chilenos têm taxas de analfabetismo, homicídio e desemprego abaixo da média regional; já o PIB per capital está acima do dos vizinhos.
Já o Peru voltou ao regime democrático em 1980. A partir de 1990, o país passou por um período de reformas liberais, comandadas pelo presidente Alberto Fujimori – "El Chino", como era jocosamente chamado devido à origem oriental. Apesar do início promissor, Fujimori despertou o populismo típico do continente: fechou o Congresso, reformou a Constituição para ser reeleito e pretendia se perpetuar no poder. Só foi impedido porque denúncias graves de corrupção o afastaram do poder. Desde então, o Peru divide seu tempo e energia entre propostas de salvação nacional e novas denúncias de corrupção.
A Bolívia, terceiro personagem da capa de VEJA de 1970, parece ter feito uma viagem ao passado. Eleito em 2006, o presidente Evo Morales, determinou o monopólio estatal dos negócios do gás e do petróleo. Sem aviso prévio, mandou o Exército invadir refinarias de propriedade de empresas estrangeiras – uma das maiores prejudicadas pela ação foi a brasileira Petrobras, que investira bilhões de dólares no país vizinho. É a terceira vez que a Bolívia estatiza seus recursos fósseis e minerais. Nas duas anteriores, em 1937 e 1969, a intervenção não ajudou o país a amenizar a miséria de seu povo e, por isso, acabou sendo revertida. No plano doméstico, Morales trava duras batalhas com a oposição para reformar a Constituição nacional e ampliar mudanças rumo a um suposto “socialismo”. Seu grande mentor neste tema – e também na questão da nacionalização do gás e do petróleo – é o venezuelano Hugo Chávez.
Curiosamente, a Venezuela não foi tragada pela onda de regimes militares que assolou a América Latina nos anos de 1960 e 1970. Porém, em pleno século XXI, o país caminha em direção a uma ditadura personalista, concentrada nas mãos de um presidente eleito democraticamente. Hugo Chávez é o cacique dos novos populistas latino-americanos. Caudilho de tradição caribenha, ele usa o lucro farto do petróleo venezuelano para alimentar uma política doméstica assistencialista e financiar aliados nos países vizinhos – caso de Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, e Daniel Ortega, na Nicarágua. Além disso, ele viaja pelo mundo repetindo pregações contra o "inimigo dos oprimidos", os Estados Unidos, numa tentativa de ressuscitar a antiga tática da esquerda de eleger um adversário e atribuir a ele todos os males domésticos. A divisão na América Latina, porém, nada tem a ver com o velho confronto entre esquerda e direita. O que existe é uma linha entre governos responsáveis e populistas. México, Chile e Brasil estão no primeiro grupo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve os fundamentos de estabilidade econômica herdados do governo anterior e não tenta subverter as regras do jogo político para se tornar um ditador. A inflação é baixa, e os investimentos externos estão aumentando. Já do lado dos populistas, uma característica comum é revestir o discurso com retórica de esquerda: é o caso de Chávez, Morales e, em menor medida, ao argentino Néstor Kirchner.

Wednesday, February 07, 2007

Donald Kagan e as guerras


Donald Kagan é um historiador americano de origem lituana nascido em 1932. Professor de História da Grécia Antiga na Universidade de Yale, Kagan escreveu um notável estudo sobre a Guerra do Peloponeso em quatro volumes, publicado em 1969-1987. Embora uma versão resumida dessa obra tenha sido lançada no Brasil em 2006 (A Guerra do Peloponeso, Editora Record), seus trabalhos são poucos conhecidos ou discutidos aqui. O mesmo ocorre com os escritos do seu filho, Robert Kagan (nascido em 1958), um destacado analista político, que tem um pequeno mas excelente ensaio traduzido para o português (Do Paraíso e do Poder – Os Estados Unidos e a Europa na Nova Ordem Mundial, Editora Rocco, 2003). Donald Kagan também é autor de um livro formidável sobre as origens das guerras – On the Origins of War and the Preservation of Peace (Anchor Books, 1996). Nesse livro, Kagan analisa as origens da Guerra do Peloponeso, da Segunda Guerra Púnica, da Primeira Guerra Mundial, da Segunda Guerra Mundial e da Crise dos Mísseis de Cuba, que quase desencadeou a Terceira Guerra Mundial. Na Introdução desse estudo, ele faz algumas reflexões sobre o poder e sua projeção internacional sob a ótica da teoria realista. Um resumo dessa Introdução, com adaptações, segue abaixo:

1. O fim das guerras mundiais?

O colapso da URSS em 1991 encerrou a perigosa rivalidade bipolar de 50 anos. Para muitos analistas, esse acontecimento inaugurou uma nova era de segurança, prosperidade e paz, resultado da vitória do Ocidente sobre o Leste, da democracia sobre a ditadura comunista, do livre mercado sobre o dirigismo econômico. Uma paz duradoura agora seria possível porque: (I) a expansão do livre mercado e das comunicações, integrando economicamente os países no processo de globalização, tornaria improvável ou impossível uma grande guerra entre as potências; (II) a extensão da democracia pelo mundo tornou-o mais pacífico, haja vista que as democracias não lutaram entre si na modernidade; (III) a nova balança do poder deixou as potências satisfeitas com o seu lugar no mundo; (IV) a existência dos arsenais nucleares, com capacidade de retaliação, impedem guerras generalizadas entre grandes potências; (V) o triunfo do liberalismo sobre o socialismo encerrou os grandes conflitos ideológicos.
Mas esse otimismo existiu no passado em outras conjunturas, como no final do século XVIII, no século XIX e no início do século XX, quando também se dizia que o comércio e os regimes representativos seriam barreiras contra as guerras. Contudo, em 1792-1815, todas as grandes potências da Europa foram envolvidas nas guerras da Revolução Francesa e da Era Napoleônica, e em 1914-1918, todas as grandes potências industriais lutaram na Primeira Guerra Mundial.

2. O otimismo pacifista ocidental

Um aspecto cultural fundamental do Ocidente moderno é a crença de que os seres humanos podem modificar e controlar o ambiente físico ou natural e a natureza humana para melhorar as condições de vida. Essa crença tem sua origem na (I) Revolução Científica dos séculos XVI-XVII, que iniciou a crença de que a natureza poderia ser manipulada com esse propósito, e na (II) Revolução Intelectual do século XVIII (o Iluminismo), que desenvolveu a idéia de que a sociedade e o comportamento do indivíduo poderiam ser adaptados para criar o progresso, a paz e a prosperidade. Como a natureza, os povos e as instituições foram vistas como infinitamente maleáveis, exigindo apenas inteligência, boa vontade e determinação para serem aperfeiçoadas.

3. O grande equívoco

A idéia de que a “Era das guerras entre as potências” acabou foi ou é defendida por otimistas (argumento das vantagens do comércio e da democracia) e por pessimistas (argumento do temor da destruição mútua). No entanto, esse raciocínio ou conclusão está errado. Esperando e acreditando no progresso, ambos esqueceram que a guerra faz parte da experiência humana desde tempos pré-históricos. Em 1968, Will e Ariel Durant calcularam que houve apenas 268 anos livres de guerras nos 3421 anos anteriores. Os antigos gregos tinham consciência da constância da guerra. Ao contrário deles, no entanto, o mundo moderno falhou em compreender as causas da guerra. Nossa época procurou as causas e origens das guerras em forças impessoais: (I) na monarquia, aristocracia e a antiga índole guerreira que as envolvia; (II) na luta de classes; (III) no imperialismo; (IV) na corrida armamentista: (V) no sistema de alianças etc.

4. Poder

Os estudiosos modernos mais astutos concluíram que algo mais fundamental gera as guerras: a competição pelo poder. O ilustre historiador Michael Howard, no livro The Causes of War (1983),observou que “em 1914 a maioria dos alemães, e em 1939 quase todos os britânicos, sentiram-se justificados a irem à guerra não por causa de alguma questão específica que poderia ser resolvida pela negociação, mas para manter o seu poder antes que ficassem isolados, tão impotentes, que não lhes restaria nenhum poder e teriam que aceitar uma posição subordinada dentro de um sistema internacional dominado por seus adversários.”
Mas o que é o poder? Poder é a habilidade de impor a sua vontade sobre outro, em geral pela força. Isso não é necessariamente ruim porque o poder é em si neutro. Na verdade, poder é a capacidade de atingir fins desejados, bons ou maus. Ele também é a capacidade de resistir às exigências e pressões de outros. Nesse caso, o poder é fundamental para se obter e preservar a liberdade.

5. Realismo e neo-realismo

O poder no nosso mundo é essencial e a disputa por ele é inevitável. Esse ponto de vista é básico entre os cientistas políticos modernos realistas e neo-realistas que estudam as relações internacionais. Os realistas acreditam que todos os Estados e nações buscam o máximo de poder possível. Para eles, o conflito gerado pela busca ilimitada do poder só termina quando uma potência domina todas as outras ou quando o medo recíproco gera uma paz. Os neo-realistas afirmam que os Estados buscam não o poder em si ou a dominação, mas a segurança que, por sua vez, requer poder. Eles têm uma visão menos assustadora porque deixam a esperança de que sistemas podem ser construídos e pessoas educadas de maneira a controlar o poder, fornecendo segurança a todos sem uma luta interminável, embora nenhum sistema tenha alcançado isso ainda. Para os neo-realistas, os Estados buscam o poder para preservar as coisas boas que eles possuem na paz e na segurança.
A maioria dos estudiosos dessa questão assume que os Estados buscam o poder para alcançar objetivos práticos e tangíveis: riqueza, prosperidade e liberdade de interferência externa. Mas a extensão dos objetivos que levam um povo a ir à guerra é muito ampla e nem sempre tão prática. De acordo com Geoffrey Blainey (The Causes of War, 1973), as causas das guerras são variedades do poder: nacionalismo, expansão ideológica, proteção de povos irmãos em terras adjacentes, desejo de mais comércio e territórios, vingança de uma derrota ou insulto, fortalecimento nacional ou independência, desejo de impressionar ou cimentar alianças. Mas a lista não unicamente de variedades do poder, mas também inclui objetivos pelos quais se procura o poder.

6. Tucídides

Tucídides, o antigo historiador grego, forneceu uma explicação clara, mais profunda e compreensiva das razões dos Estados guerrearem: ele entendeu que era competição armada pelo poder. No seu famoso livro, História da Guerra do Peloponeso, no igualmente famoso trecho do Diálogo Meliano, os atenienses afirmam que a busca ilimitada do poder é natural, tanto nos céus como na terra. Segundo Tucídides, as pessoas vão à guerra pela “honra, medo e interesse”. Que o medo e interesse causam guerras não surpreende o leitor moderno, mas o papel da honra pode soar estranho. Se entendida como fama, glória, renome ou esplendor, parece coisa do passado, anacrônica. No entanto, entendida como respeito, estima, dever justo, consideração ou prestígio é um importante motivo das guerras no mundo moderno. Nesse sentido, ela é desejável em si mesma, mas também de importância prática na competição por poder. Quando o poder de um Estado aumenta, o respeito e deferência por ele crescem. Mas mesmo quando o seu poder material aparenta continuar o mesmo, na realidade ele declina se as atitudes acerca dele mudarem. Isso acontece mais frequentemente quando um Estado perde a vontade de usar o seu poder material.